Eu nunca havia pensado em dar um bofete; não que eu seja a melhor pessoa do mundo, ou que só tenha boas intenções, mas a verdade é que nunca havia sido acometida de tal impulso; talvez eu seja um pouco covarde quando se trata de desentendimentos, pois estou sempre disposta a ceder se o resultado da conversa for gerar violência, briga ou qualquer melindre; eu devo admitir que até uso uma dose de hipocrisia "você sabe que você tem razão?" digo e saio de perto. Amar o próximo quando ele está muito próximo, às vezes, tem sabor amargo; hora da retirada, porque manter a distância tem aquele poder de proteger e evitar o desgaste.
Olhando o passado de longe, devo confessar também que eu não me lembro de ter encontrado alguém que tivesse me despertado uma vontade de abrir mão de uma das coisas que mais me fascina que é a comunicação. É através dela que eu me adapto ao mundo, ou que eu adapto o mundo, através de uma palavra, um olhar, carinho, um sorriso ou um silêncio.
Desde quando chegamos à Alemanha, encontramos pessoas educadas e confiáveis; fiquei surpresa de ter feito amigos tão rapidamente, quando na minha visão estereotipada, o representante alemão era frio e distante. Talvez, por isso, eu tenha me surpreendido tanto. Consequentemente, o novo representante do povo alemão para mim havia passado a ser alguém gentil e confiável, pelo menos até o dia de renovação do visto.
Aqui na Alemanha a regra é clara, se você cumprir os requisitos, a renovação é concedida. No nosso caso, todos os itens foram preenchidos e conferidos minuciosamente (várias vezes), pois na primeira vez que solicitamos o visto, todos deixaram isso claro e não tivemos qualquer problema.
No dia da renovação, chegamos ao escritório de estrangeiro um pouco antes do horário e aproveitamos o tempo de espera para conferir tudo de novo. Quinze minutos depois, o número da nossa senha foi indicado para um número de mesa. Na sala a qual nos dirigimos havia quatro mesas, que teoricamente tinham seus respectivos números, e uma delas seria a nossa. Por isso, perguntamos à pessoa da primeira mesa, porém antes mesmo que terminássemos a pergunta, a servidora pública disse: weiter (siga), o que me causou um pouco de estranheza, pois eu nunca havia sido interrompida na Alemanha.
Juntamente com outros estrangeiros, seguimos até as próximas mesas, quando uma jovem nos ofereceu lugar. Para ter certeza de que era a nossa mesa, perguntamos se aquela tinha o nosso número pois não havia qualquer indicativo; e a resposta foi: "se não fosse, eu não teria oferecido lugar para sentar".
Nesse momento, eu me senti na piada do seu Lunga, aquele bruto que quando visto lavando o carro na porta de casa e perguntado se está limpando a máquina, ele retruca, dizendo "não estou sujando e começa a jogar areia".
No caso, era tudo real, e eu já estava em choque, a autoestima do meu idioma alemão havia corrido para o precipício mais próximo e ameaçava pular.
"Vem pra cá". Foi o que eu lhe falei imediatamente.
Em poucos segundos, nem sei se me ouviu, ela pulou.
Aquele silencio constrangedor de repartição pública foi interrompido pela servidora.
"Vocês não entendem nada de alemão. Vocês têm um Dollmetscher? Vocês precisam de um Dollmetscher?"
Eu, gritando, perguntei "o que é Dollmetscher" para a minha autoestima caída no precipício, pois ela havia levado parte do vocabulário, e de forma quase inaudível ela respondeu: trrraaa-duutor.
Um parênteses aqui: a palavra Dollmetscher raramente é usada; no dia a dia as pessoas usam Übesetzer, que também significa tradutor. Em suma, eu nunca havia ouvido Dollmetschter. Seria como se alguém no Brasil dissesse: "você merece um amplexo", ao invés de dizer "você merece um abraço". Quem usa no cotidiano a palavra amplexo? Talvez os ministros do supremo.
Com receio de desencadear uma guerra, eu falei "no ano passado nós fizemos tudo sem Dollmetscher e funcionou; temos todos os papéis", que até então não tinham sido nem olhado à distância.
"Vocês trouxeram o Antrag?"
De novo um vocabulário do supremo para dizer algo simples: formulário, que em alemão também é chamado Formular; e até quem não fala nada de alemão seria capaz de entender.
"Nós temos todos os documentos que nos pediram por carta, e lhe mostramos a carta. Onde se consegue um Formulário?"
Ela tirou dois formulários da gaveta e nos deu. Ora, então não poderíamos ter trazido, o formulário só poderia ser conseguido ali.
Nessa hora, eu me levantei e lhe dei um bofete, depois outro, depois outro; nos segundos subsequentes, segurei o seu rosto e olhei nos olhos dela. Lá vi refletido um sofrimento, que me fez lembrar da sensação com a qual acordei, enquanto aquele silêncio interminável pairava no ar, naquela sala que exalava tensão e choque.
"Por que não me mataste?" Eu perguntei naquele ambiente onírico onde o impossível tem uma dimensão palpável, e você não entende o porquê daquele acontecimento, todavia, nenhum outro seria mais apropriado. No entanto, ele dói e aciona o sofrimento do mundo dentro de você.
Eu lembrei, eu havia acordado me sentindo blue, e fiquei pensando se esse meu sentimento teria um vaso comunicante invisível capaz de despertar em alguém um sofrimento inexplicável que resultasse num desconforto e má vontade; e obviamente a pessoa não saberia de onde vinha aquela torrente, no entanto, gostaria de se livrar dela o mais breve possível.
Eu lembrei, eu havia acordado me sentindo blue, e fiquei pensando se esse meu sentimento teria um vaso comunicante invisível capaz de despertar em alguém um sofrimento inexplicável que resultasse num desconforto e má vontade; e obviamente a pessoa não saberia de onde vinha aquela torrente, no entanto, gostaria de se livrar dela o mais breve possível.
Isso tudo veio à minha mente enquanto eu buscava o significado da palavra Antrag (formulário).
Eu tenho o maior prazer em ser covarde em matéria de revidar, talvez porque eu ame gente e tenha aquela visão idílica de que o mundo é um quebra-cabeça no qual todos os seres são peças insubstituíveis; pode parecer insólito, mas eu acredito que se eu me sentasse para tomar um café com aquela criatura, ela me contaria histórias incríveis que meu fascínio não hesitaria em repetir mil vezes "histórias conectam pessoas"; é isso que ele me diz quando a gente escuta alguém.
Diante da minha covardia, tudo que eu fiz foi calma feito um buda amarrado e sem vocabulário suficiente dizer: "nós vamos trazer um tradutor e um formulário, mas nós compreendemos o que a senhora diz."
Um novo silêncio de repartição imperou e foi rompido mais uma vez com as seguintes palavras:
"Vou ver o que posso fazer, preencham o formulário e e voltem."
Eu acho que eu nunca havia preenchido um formulário tão lentamente.
"Vocês demoraram muito."
"A gente volta outro dia."
"Vamos ver o que podemos fazer."
Apresentamos finalmente documentação, que estava correta e nos foi pedido para voltar em duas semanas, para finalizar o processo.
Ao sair de lá, eu fiquei pensando que quando se lhe dá com estrangeiro (seja você ou o outro), esse passa a ser visto como representante daquele país, por isso, se escuta: o alemão é isso, o inglês é aquilo, o brasileiro é assim, enquanto é provável que isso não passe de uma experiência isolada.
Fiquei também matutando que minha adaptação aqui teria sido mais difícil se essa tivesse sido a nossa primeira experiência no departamento de estrangeiro, talvez tivesse sido capaz de reprimir as minhas iniciativas de conversar, e eu hoje nem tivesse amigos.
É confuso pensar que alguém teria tido o poder de mudar o curso da minha vida aqui… ou teria sido eu que lhe teria dado esse poder e passasse o resto dos meus dias reclamando das injustiças do mundo e vendo refletido nos outros o meu próprio sofrimento?
"Que bofete que nada, vem cá, vamos tomar um café que eu vou te adorar!"
Eu tenho o maior prazer em ser covarde em matéria de revidar, talvez porque eu ame gente e tenha aquela visão idílica de que o mundo é um quebra-cabeça no qual todos os seres são peças insubstituíveis; pode parecer insólito, mas eu acredito que se eu me sentasse para tomar um café com aquela criatura, ela me contaria histórias incríveis que meu fascínio não hesitaria em repetir mil vezes "histórias conectam pessoas"; é isso que ele me diz quando a gente escuta alguém.
Diante da minha covardia, tudo que eu fiz foi calma feito um buda amarrado e sem vocabulário suficiente dizer: "nós vamos trazer um tradutor e um formulário, mas nós compreendemos o que a senhora diz."
Um novo silêncio de repartição imperou e foi rompido mais uma vez com as seguintes palavras:
"Vou ver o que posso fazer, preencham o formulário e e voltem."
Eu acho que eu nunca havia preenchido um formulário tão lentamente.
"Vocês demoraram muito."
"A gente volta outro dia."
"Vamos ver o que podemos fazer."
Apresentamos finalmente documentação, que estava correta e nos foi pedido para voltar em duas semanas, para finalizar o processo.
Ao sair de lá, eu fiquei pensando que quando se lhe dá com estrangeiro (seja você ou o outro), esse passa a ser visto como representante daquele país, por isso, se escuta: o alemão é isso, o inglês é aquilo, o brasileiro é assim, enquanto é provável que isso não passe de uma experiência isolada.
Fiquei também matutando que minha adaptação aqui teria sido mais difícil se essa tivesse sido a nossa primeira experiência no departamento de estrangeiro, talvez tivesse sido capaz de reprimir as minhas iniciativas de conversar, e eu hoje nem tivesse amigos.
É confuso pensar que alguém teria tido o poder de mudar o curso da minha vida aqui… ou teria sido eu que lhe teria dado esse poder e passasse o resto dos meus dias reclamando das injustiças do mundo e vendo refletido nos outros o meu próprio sofrimento?
"Que bofete que nada, vem cá, vamos tomar um café que eu vou te adorar!"