domingo, 5 de outubro de 2014

A dama e o vagabundo

Numa pequena cidade onde a nova moradora, de pseudônimo Joana, não conseguia pronunciar uma palavra do idioma falado, ela se via isolada e desprovida da sua ferramenta predileta: a comunicação. Ela queria anunciar a todos o quanto era interessante para uma boa conversa, porém não tinha como.

À parte dos livros e gramáticas que lia, dos vídeos, conversas e diálogos que ouvia no seu smart phone, enquanto andava pela cidade, ou quando sentava-se num café, tentando aprender por osmose, era o silêncio o seu fiel companheiro, durante os primeiros meses da sua chegada. 

Por vezes, sentia o silêncio gelado das igrejas, quando as visitava no horário das missas, no intuito de encontrar uma alma generosa que lhe compartilhasse o "paz de Cristo". 

"Eu existo, alguém falou comigo." Dizia-se ao sair das belas catedrais, lembrando-se das pessoas que são ignoradas nas ruas da maioria das cidades do mundo, inclusive por ela própria.

Quando Joana não estava nos cafés ou nas igrejas, andava pela cidade, feito gente sem rumo, sem propósito e sem parente. Talvez fosse mais preciso dizer que ela vagava nas ruas tanto quanto os bêbados, ambulantes e excêntricos, que conheciam a solidão em carne e osso.

A propósito, os transeuntes ébrios e excêntricos, de tanto a virem, passaram a cumprimentá-la com um meneio de cabeça, ou lhe dirigiam uma palavra de saudação. A solidão os tornavam ainda mais semelhantes.

Sem compreender detalhes do que lhe era dito, porque isso não lhe era o mais importante, mas sim a troca e o possível diálogo, ela devolvia o cumprimento com um sorriso comprimido daquele, que não se mostra nenhum dente, ou com o balançar positivo de cabeça.  Essa troca era uma espécie de exercício  para manutenção da sanidade. 

Certa vez, enquanto sentada num café, deliciando um chá com madeleines, um jovem ébrio, que sempre andava por ali a pedir um dinheiro, ao vir a jovem sentada, tomando o seu chá, não se fez de rogado e lhe pediu gentilmente o dinheiro que lhe faltava para tomar um trago. Era óbvio que ela não lhe financiaria o vício. 

A aparência dele era maltrapilha e encoberta por sujeira. Visivelmente não tomava banho há dias, devia ter levado algumas quedas ou entrado em brigas, pois havia machucado a boca e quebrado um dente. Era quase inconcebível que um jovem aparentemente estudado, de corpo musculoso, olhos amendoados, cabelo angelical, tivesse chegado àquele estado de penúria. 

Ao ouvir "não" como resposta, o jovem bêbado disse que era só um trocado e xingou publicamente a família da jovem, insistindo que ela tinha dinheiro, "pois como poderia pagar o café?", enfatizou o rapaz, ao seguir o seu caminho torto.

Para o desconforto e tristeza de Joana, ela deparou-se frente a frente com o jovem ébrio inúmeras vezes no decorrer dos meses seguintes, e, o episódio de xingamentos repetiu-se sem cerimônia. De longe percebia-se a presença dele, fosse pelo tom agressivo da voz, fosse pelo cheiro ou aparências lastimáveis.

As folhas do outono passaram a cobrir as ruas da cidade, e o inverno ansioso antecipou-se. Pelo menos essas duas estações daquele ano testemunharam os atos antissociais praticados pelo etílico rapaz. Não fosse o rigor desse inverno tê-lo forçado a se abrigar em algum lugar distante, as suas aparições não teriam se tornado relativamente esporádicas; o cenário da cidade chegou a ter dias de aparência  incompleta na visão dos transeuntes, habituados àquele espetáculo de comiseração. Incompletude essa que durou apenas até estréia da seguinte estação.

Os primeiros sinais discretos da primavera já eram comentados pelos moradores, e o sol apesar da sua timidez passou a visitar a cidade com uma frequência surpreendente, segundo a opinião dos moradores otimistas. 

Qualquer reflexo solar imbuía-se do poder de tirar as pessoas de suas casas, convidando-as a sentar nos cafés, praças e bares.

Joana seguia os raios solares, como os demais moradores empolgados. Certa vez, sentou-se na praça para ler um livro no idioma local. O fato de ser um livro infantil e que já tivesse sido lido no seu próprio idioma não retirava por completo o mérito do seu esforço diário de aprender o idioma naqueles meses de uma aparente clausura. Ela já ousava comunicar-se nas ações do cotidiano e compreendia o interlocutor, se o diálogo contivesse frases simples.

Naquele dia, Joana sentiu, pela primeira vez, certa intimidade com o idioma e comemorou internamente a sua conquista, embora estivesse longe de se sentir fluente naquela língua precisa cujos substantivos impunham o respeito de serem escritos com a letra maiúscula. Enquanto lia concentrada, anotando num bloco de notas as palavras que desconhecia, foi interrompida.

"Desculpe interromper." Disse ele.

O rapaz deve ter dito em voz baixa, ou talvez ela não tenha ouvido devido ao grau de concentração da leitura. 

"Oi. Desculpe interromper." Ele insistiu, em tom mais alto.

Dessa vez, ela ouviu, ou fingiu não ter ouvido. Joana chegou a olhar de soslaio o rapaz e constatou que o rosto lhe parecia familiar. Testemunhas da praça disseram que ela estava tensa e que virara duas páginas do livro, em seguida. Era notório que ela não tinha fluência para ler naquela rapidez.

"Oi. Desculpe interromper." Ele repetiu, aproximando a pontinha do dedo indicador ao braço dela. Por uma questão de milímetros, não chegou a lhe tocar.

Ela virou o rosto em direção ao chamado e quase não o reconheceu. Lá estava ele, o jovem etílico, ao lado dela na praça, lavado, penteado, vestido com uma indumentária limpa, digna de um modelo Armani, e, pasmem, sóbrio e com modos educados. Há de se registrar que o canino superior havia caído de vez. Todavia, no conjunto, apresentava-se bem. Não lhe restava qualquer aparência de cachorro sem dono. Se lhe fosse dado um incentivo, poderia tentar a vida como modelo, desde que consertasse definitivamente o vício e o dente.

Joana não sabia o que dizer tão pouco queria demonstrar qualquer sentimento de surpresa. Por isso, conteve-se, como se fosse natural que ele lhe dirigisse a palavra, sem a agressividade corriqueira.

"Sim." Foi tudo que ela respondeu, ao seu pedido de  desculpas pela interrupção.

De forma simples e direta ele lhe fez um pedido, que a deixou estupefata e silente, por alguns segundos.

"Podemos nos encontrar diariamente para conversar, pois eu me sinto muito só?" Perguntou-lhe sereno e doce olhando-a nos olhos.

Seria possível que uma jovem fosse levada pela sedução de seguir em frente, na tentativa de comprovar a capacidade do ser humano de recuperar um ao outro. 


Talvez essa situação fosse aquela isca da vida, que se confundem com uma missão heróica de resgatar uma alma perdida. Joana relembrou-se silenciosamente  dos seus sonhos de se tornar uma heroína. 

Num piscar de olhos, a sua imaginação a conduziu às casas de mulheres onde essas se imbuiram da missão de salvar o outro, proporcionando sentido à própria existência, tentando mudar a jornada do outro. Olhou essas mulheres no espelho e as viu extenuadas, tornando-se vítimas do seu próprio sacrifício.

Coincidentemente, no idioma daquela cidade, não há diferença entre o vocábulo vítima e sacrifício. Por consequência, dizer "eu me sacrifiquei por você" é idêntico a dizer "eu fui vítima por você".

Se Joana tornar-se-ia a heroína da sua própria história, ainda era cedo para confirmar. No entanto, estava claro que ela não estava disposta a se tornar a sua própria vítima. 

“Não vai ser possível”, respondeu-lhe Joana serenamente; e o jovem levantou-se e seguiu na sua jornada. 

quinta-feira, 2 de outubro de 2014

O corpo nosso de cada dia

O corpo tem várias utilidades. Apesar disso, há quem o utilize como mero meio de transporte para a cabeça.

"Penso, logo existo." Repetem, em coro, os devotos do transporte corporal e do senhor Descartes.

Entretanto, quando se dança, não se pode pensar, caso contrário, o erro é inevitável; quando se medita, evita-se o pensamento; ao se fazer um desenho ou escalar uma montanha não é bem-vindo qualquer tido de linguagem, sob pena de interrupção da atividade. Nesse ínterim de perfeita harmonia entre o corpo e o mundo, não pensamos, por isso, não existimos? 

Aos praticantes de atividades desse gênero, a ausência de pensamento é uma dádiva, um alívio, ou uma trégua. 

Aos que levam anos a fio sem qualquer contato com o corpo que habitam, esse ponto de vista é quase esotérico; e somente quando algum incômodo surge, o dono toma conhecimento de que ali tem vida além de pensamentos. 

"Mas nada que um barbitúrico não adie esse locador inoportuno." Algum pragmático pode sugerir.

Consequentemente, a chance de um relacionamento de gentileza entre o corpo e o seu usuário diminui, e o corpo acabará sendo subutilizado como transporte, taxiando quando solicitado.

Há quem sustente que o espírito é superior ao corpo e que deve ter prioridade. Porém que espírito sustenta-se sem o corpo?  

"O corpo fala." Dizem alguns, fazendo alusão aos gestos inconscientes que demonstram que a mente mente. 

Nesse caso, parece que o corpo desmente o que a mente mente, e não que ele se comunicou genuinamente.

Corpo nosso de cada dia despertai a capacidade de interagir antes que os pensamentos tomem forma ou nos deformem.