sábado, 12 de novembro de 2011

Amor nos tempos do sertão

O sonho de Raimundo era rever o sertão, onde nasceu e viveu até a idade de 6 anos. Parecia uma promessa que ele havia feito; falava disso sempre que os filhos estavam de férias, numa tentativa de sensibilizar alguém para acompanhá-lo. No entanto, os filhos adolescentes tinham outras prioridades e ouviam a vontade do pai como um devaneio.



- Ser-tão... só o papai mesmo pra propor uma viagem dessa - murmuravam os filhos.



Anos mais tarde, Raimundo começou a narrar as suas histórias. Os filhos, já formados, as ouviam como anedotas, pois o conteúdo e o cenário pareciam oníricos.



Cavaleiros de gibão tangendo os carneiros; Cremiuda, a porca mais famosa do lugarejo; mutamba e croatá, as frutas nativas que, de tão ácidas, faziam a boca sangrar.



- O sertão do papai é totalmente diferente do da televisão -debochavam os filhos.



Mais anos se passaram, e chegou a época em que os filhos pediam a Raimundo que contasse as suas histórias; e essas começaram a incendiar a curiosidade daqueles jovens que só viam filmes de Hollywood.



Raimundo adorava contar como viviam bem no sertão, seus pais, Rita e Plácido, e seus cinco irmãos.



Perto da casa, havia um riacho intermitente. No período de chuva, conseguiam drenar água para as plantacões de arroz, feijão e mandioca. Na seca, tinham um buraco no chão; e de tempos em tempos, matavam um carneiro ou uma leitoa para celebrar um evento importante, a visita de um parente, ou jantar de natal.



Não havia quase nada em volta. O único local de divertimento só era acessível aos homens; era a casa da Bete, mulher experiente e de moral com os políticos. Ninguém falava sobre o assunto, quem podia frequentá-lo, o fazia e mantinha o segredo.



Só deixaram o sertão porque a escola mais próxima ficava a duzentos quilômetros dali. Seus pais tinham claro que seria difícil dar uma oportunidade melhor aos filhos. Foi uma decisão bem pensada, segundo Raimundo.



Raimundo é meu pai.



Durante parte das nossas vidas, a minha relação com o meu pai tinha uma aparência mais burocrática do que afetiva. Ele cumpria o papel de provedor, e eu cumpria o papel de filha, obediente.



Minha relação de parceria, desde a infância, foi com a minha mãe; talvez porque ela também era a intermediadora da casa. Meu pai nunca brigava; ele pedia para minha mãe fazer essa parte.



De modo que só vim conhecer meu pai de perto bem mais tarde... numa viagem ao sertão.



Enquanto viajávamos, ele contava os detalhes da sua infância. Nós ríamos, e ele se emocionava. Quanto mais nos aproximavámos do destino, mais inserido naquele universo ele se encontrava.



Houve um momento em que ele parou o carro no acostamento da estrada e se meteu sozinho mato a dentro e, quando voltou, tinha a boca cortada de tanto comer mutamba. Respeitamos e compreendemos o seu súbito desejo, porém nos demos o direito de dar boas gargalhadas.



Nem aparato tecnológico, como GPS, nem mapas foram utilizados para chegarmos ao local. Todos os caminhos pareciam evidentes ao antigo morador, apesar de terem se passado quase sessenta anos.



- Segue reto, dobra ali; segue que é logo ali.



Passaram-se os carnaubais e os buritizais; e tome légua de poeira e sol quente.






De repente...



- Olha ali o riacho à esquerda. Entra aqui... pode parar. Olha lá... a da direita é a nossa casa; e aquela ali é a casa do tio Pedro... ouvi dizer que o padre Benedito, que largou a batina, voltou a morar aqui depois de ter vivido anos na Europa... o jeito é bater palma pra ver se tem alguém morando.






Palmas batidas e padre Benedito abriu a porta. Parecia que havíamos descoberto um tesouro. Foi um movimento coletivo de se abraçar, de se emocionar, e tirar fotos que ave-maria. Depois dos cumprimentos, vieram o beiju e o cafézinho; tudo feito dali mesmo.



Padre Benedito, que havia largado a batina e se casado, ainda era conhecido por padre, e não se incomodava com o fato. Ele contou sobre as suas andanças pela Europa; e nós lhe perguntamos por que ele havia decido voltar.



- Porque gosto de viver da terra. Aqui planto, colho e aprecio. Vivo o ciclo da vida.



Depois de tantas memórias e recordações, padre Benedito perguntou se meu pai sabia por que Rita e Plácido haviam saído dali. Meu pai deu a explicação, que conhecia, sobre os estudos e oportunidades distantes.Padre Benedito limpou a garganta, tomou mais uma dose de cafeína e disse:



- Já que os atores não estão mais em cena, peço licença pra contar.



As emoções do meu pai estavam espalhadas por toda parte; que ninguém se atrevesse a juntar. Era a primeira vez que eu o via assim: frágil e forte feito o amor.



- Seu pai havia se apaixonado por outra mulher e marcou de fugir com ela. Uma vizinha ouviu a conversa e contou a Rita. No dia marcado para a fuga, Rita arrumou você e seus cinco irmãos e foi ao ponto do pau-de-arara. Na hora do embarque, Rita entrou e disse: vamos Plácido que já estamos todos aqui. E assim sua família partiu pra cidade; e Plácido deu adeus à amante - revelou padre Benedito.



Rita e Plácido, meus avós, tiveram mais sete filhos e viveram juntos até a morte.



Essa foi a viagem em que meu pai conheceu a história de seus pais, e eu reconheci o meu amor por ele.

4 comentários:

  1. Livinha,

    Também gosto muito dessa história e adorei escrevê-la. Cheguei a enviá-la a um concurso, porém ela não escolhida. Em compensação, está aqui no blog para quem quiser degustar desse bolo feito em família.

    Obrigada por ter lido e comentado.
    Bisous,
    Silvie

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  2. Emocionante! Eu preciso ir para o ser-tão! É urgente, gente!
    Beijocas Silvia!
    Marie

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  3. Marie,
    Se você der a sorte de ver no sertão a combinação de um dia de sol e depois de uma chuvinha (mínima que seja), você vai ficar impressionada com a mudança da paisagem. Parece mágica. Ou talvez seja. "O sertão é o mundo" (G.Rosa).
    Obrigada por ter lido e comentado (eu adoro).
    Beijos,
    Silvia

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