domingo, 5 de junho de 2011

Juízo

Ainda jovem, Edir começou a se dedicar aos estudos; era aquele raro adolescente que já sabia o que queria, não se metia em confusão e se comportava como um adulto. Tinha o caráter forte; era rigoroso consigo mesmo e tinha certa tendência a autoflagelação se cometesse erros ditos banais.

Tornou-se um homem reto, e de sentimentos reservados. Formou-se em direito e, antes que todos imaginassem, ingressou na magistratura; e com rigor julgava os casos que lhe submetiam. Justiça rápida e eficaz; não admitia sentimentalismo. Dizia com orgulho que todos os acusados foram devidamente punidos.

Casou-se e teve dois filhos. Era um homem feliz e realizado.

Não compreendia a dificuldade que as pessoas tinham em seguir regras; não entendia por que algumas pessoas queriam fazer diferente das convenções sociais.

Por conta do seu rigor, teve alguns desentendimentos familiares; deixou de falar com um irmão que abandonou os estudos e vivia de “bicos”; e não se entendia muito bem com a irmã que havia se divorciado de um homem bom, segundo ele.

As reuniões de família se resumiam à mulher e aos filhos. Era um homem de poucos amigos, porém profissionalmente respeitado.

Seus filhos cresceram e também ingressaram na carreira jurídica. Edir era o próprio retrato do orgulho.

“Que mais um homem podia querer?”

Tinha acabado de completar 50 anos, porém trabalhava com o vigor dos 30. Todos ficavam impressionados com a sua produtividade.

No entanto, foi surpeendido numa audiência por um lapso de memória; irritou-se e não julgou o caso. O episódio repetiu-se mais três vezes até que ele decidiu ir ao médico.

Os médicos detectaram um princípio de Alzheimer.

“Como isso foi acontecer justo comigo, um homem intelectualmente ativo?”

A ciência não soube responder.

Os lapsos de memória, relativa aos detalhes, tornaram-se cada vez mais frequentes. Edir teve que abandonar a profissão um mês depois de ter recebido o convite para o cargo de desembargador.

Como era um homem correto, admitiu que não poderia aceitar o convite, pois os seus lapsos de memória prejudicariam o andamento da justiça.

Afastou-se da profissão para dedicar-se à sua saúde. Como o seu caso era “de princípio de demência” tinha consciência de tudo o que estava acontecendo.

O que o deixava completamente devastado era o fato de as pessoas ficarem lhe lembrando o quanto ele “tinha sido o melhor nisso ou naquilo, onde ele teria chegado se isso não tivesse acontecido; as inúteis correções sobre o que ele não se lembrava, e o quanto aquilo tudo era injusto”.

“Essa saudade que vocês sentem do que eu fui me dói mais do que os lapsos de memória. Isso parece uma tortura, como se vocês não aceitassem o que eu sou. Se existe algum bem nessa doença é o alívio de não ter passado.

E talvez por não se lembrar do que lhe motivou a brigar com os irmãos, voltou a conviver com eles; e resgatou os amigos que tinha.

Superado o período de incompreensão pelo que lhe aconteceu, Edir sente-se agraciado, porque pode reconhecer o amor dos seus familiares e amigos; e hoje ele vive com a memória de cada dia, e nada mais.

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