domingo, 25 de dezembro de 2016

O (meu) natal polonês

Por circunstâncias da vida, tive que passar o natal longe dos meus pais e familiares mais antigos. 
Desde o momento que recebi a notícia de que não poderíamos visita-los durante o natal, meu coração encheu-se de angustia, porque fiquei imaginando o quão triste seria o natal longe deles. Imaginava como seria solitário passarmos somente meu marido, minha filha e eu, porque natal tem um quê de quantidade e reminiscência. 
Para minha surpresa, na véspera do natal, uma amiga convidou-nos para passarmos com a família dela. A minha amiga é alemã, o marido dela é da Arábia Saudita, e a mãe dela polonesa. 
É óbvio que eu estava ansiosa. Não sabia o que levar nem como seria essa mistura de culturas numa noite de natal.
Chegamos cedo, como combinamos. Nada de jantar à meia noite. Jantamos por volta das 19 horas. Não conhecíamos a mãe da anfitriã; fomos informados apenas que a mãe falava e fumava muito. 
Antes de chegarmos ao jantar, estávamos um pouco tensos.  Já havíamos inventado até código para irmos embora mais cedo. 
Quando batermos à porta, a nossa anfitriã abriu e ouvimos um barulho forte de uma janela sendo fechada.
- Minha mãe acabou de fumar - ela justificou o barulho.
Até então eu não havia imaginado a aparência física da mãe dela; os atributos dados: fumante e falante, só me deixavam criar uma imagem embaçada e de difícil descrição.
Logo que entramos na sala, vimos a figura materna com um olhar singelo, cabelos brancos formando um coque, roupas claras e um jeito honesto de se comunicar. Dava a impressão de não querer perder tempo. Toda a tensão evaporou.
Sem titubear, a mãe anunciou que a ceia seguiria a tradição polonesa da época em que ela morava na Polônia, há mais de trinta anos.
- A mesa está posta com um prato a mais para caso alguém chegue de última hora. Comeremos primeiro uma sopa, depois uma massa, depois peixe e salada. Mas antes de comermos, faremos os nossos desejos um ao outro olhando nos olhos e compartilhando uma ostia polonesa.
Antes de nos sentarmos à mesa, ficamos revezando aos pares e compartilhando desejos uns para os outros. 
Somente quando fiquei frente a frente com o meu marido, eu me dei conta de que há tempos não nos dávamos alguns minutos de calma para nos olharmos nos olhos e desejarmos o melhor de nós mesmos um ao outro.
No final, observei também que desejávamos o que queríamos para nós mesmos. Não foi aquele desejo tradicional de saúde e paz. Cada participante deu-se ao trabalho de elaborar um desejo especial, como se acreditássemos que estávamos sendo ouvidos pelos anjos divinos. Quem sabe estávamos?
Estou compartilhando esse momento, porque pretendo espalhar esse modo polonês de compartilhar e desejar mundo a fora e pretendo fazer dele uma tradição onde quer que eu esteja.
Desejo a você que olhe nos olhos de quem quer seja e veja os seus desejos refletidos ali! Feliz Natal!

terça-feira, 13 de dezembro de 2016

Trabalho voluntário


O chato de estar sem trabalhar em algum lugar fixo é que, além de ter pouco dinheiro, você quase não conhece novas pessoas.


Atualmente faço amizade no ônibus. É o único lugar onde fico sentada ao lado de alguém desconhecido por uma hora, pelo menos. 

Um dia dessa semana, eu me peguei torcendo por um pouco de engarrafamento, quando conheci uma jovem no ônibus. Ela devia ter uns vinte anos, cabelo naturalmente cacheado, lábios grossos, olhos e nariz grandes e bem definidos; podia ser minha filha. Puxei conversa, perguntando o que ela fazia. 

- Faculdade de engenharia - ela respondeu e perguntou o que eu fazia. 

Eu não queria decepcioná-la e, por isso, pensei em dizer que estava trabalhando, mas não sou boa de mentir pessoalmente; falei de modo sucinto que estava sem trabalhar e observei a reação dela. Ela ficou decepcionada, chegou a pedir desculpa pela intromissão. Falei que havia planejado e me preparado financeiramente para este momento. O olhinho dela brilhou. 

Não sei como nem por que, começamos a falar de intimidade amorosa. Ela perguntou como fazíamos no meu tempo. Quase tive um treco. Expliquei para ela que a minha geração teve tanta liberdade sexual quanto a dela. 

- Mas você é casada! - ela concluiu. Concordei com a cabeça, sem compreender a linha de raciocínio. Ela percebeu e me explicou que a geração dela não pensa em casar nem em namorar, praticamente. Ela pensa em independência financeira e autonomia. Fiquei impressionada com a segurança daquela jovem. Eu lhe expliquei que também dediquei a minha energia para a profissão e que isso me garantiu liberdade e autonomia. Contudo, admiti que gostava de namorar, que ficava triste e chateada se a pessoa só quisesse uma noite comigo, e que nunca fui santa e me meti em várias furadas amorosas, mas com o claro objetivo de conhecer alguém que tivesse a ver comigo, sem deixar a minha profissão de lado. 

Ela disse que hoje em dia é diferente, pois eles não têm tempo para desenvolver uma relação. As jovens querem, segundo ela, tanto garantir um bom desempenho profissional que não têm tempo para namorar. Ela mora em São Gonçalo, estuda na Gávea e também faz estágio. 

- A gente tem que confiar na gente e não depender dos outros. Quero ser solteira. Entende? 

- E romantismo e sexo? - perguntei baixinho.

- Uma coisa nem sempre tem a ver com a outra. A gente se relaciona sexualmente, mas namorar é outra história. O amor é um sentimento pra lá de sofisticado, ainda não sei o que é; até agora só senti paixão. Da minha experiência, paixão e sexo juntos só servem pra me afastar do meu objetivo de independência. Se deixar, toda semana eu me apaixono por um tipo diferente; chego a jurar que é o homem da minha vida. E olha que nem tenho tempo. Imagina se tivesse. Por isso, meu foco é o estudo e o trabalho. Chega de confusão, pelo menos por agora. 

Enquanto ela falava eu imaginava que ela poderia ser minha filha e fiquei ali almejando poder conversar francamente com a minha cria, sem julgá-la e sem querer que ela faça como eu fiz. 

- Como é o seu relacionamento com a sua mãe? Vocês têm um bom diálogo? - não me aguentei de curiosidade e perguntei.

- Você pode não acreditar, mas eu não converso com a minha mãe sobre esses assuntos, a gente se escreve num diário comum. Há muito tempo atrás, eu tinha uns dez anos, tive uns problemas sérios e não conseguia falar pra ninguém. A minha mãe me deu um diário e disse que eu poderia contar para alguém imaginário. 

Nesse momento, senti um arrepio e desejei que o mundo parasse. As feições daquela jovem, de alguma maneira, me eram familiar. Há uns dez anos, eu trabalhei numa grande empresa e fiz um trabalho voluntário de dar aulas para estimular a escrita de eventuais vestibulandos, que trabalhavam na central de atendimento da empresa. O coordenador da central abraçou a ideia e reuniu treze pessoas para participarem do projeto. Selecionei vários exercícios práticos e a cada dia eu lançava mão de um deles para manter um ritmo dinâmico, mas o principal era que eles escrevessem todos os dias; podia ser uma palavra, uma frase, ou uma página, qualquer coisa que representasse o dia vivido. O curso durou quatro semanas e a cada semana eu tinha menos alunos. Foi uma frustração difícil de esquecer. Somente três pessoas terminaram o curso. Duas delas tinham interesse em receber o certificado, pois poderiam tirar algum proveito dele; a terceira pessoa genuinamente me mostrava ao longo do curso a evolução dela e me contava aspectos da sua vida pessoal, através dos exercícios de escrita. O problema mais sério era em relação à filha, que estava sofrendo e não contava nada a respeito para ninguém. Durante o curso, distribuí cadernos e ela me pediu dois e disse que um deles era para filha; ela pediu para que a filha escrevesse uma palavra que representasse o dia vivido e, assim, ela ficou sabendo o que lhe passou. 

A jovem do ônibus era a filha da moça, que fez o curso comigo. Quando me dei conta disso, eu queria abracá-la, beijá-la, segurá-la no colo e dizer que eu tinha muito orgulho dela e da mãe, mas me contive. Eu não queria que ela percebesse que eu sabia detalhes da vida dela, que talvez ela mesma quisesse esquecer ou nem se lembrasse. Essa jovem era a prova de que algo bom pode advir de uma experiência dolorosa.