terça-feira, 9 de dezembro de 2014

Elas por elas

Durante os primeiros dias seguintes à mudança para a casa nova, ele quase não reconheceu a esposa; não fosse a sua aparência física, ele diria tratar-se de outra mulher. 

A tal esposa comportava-se como se estivesse num labirinto cheio de fantasmas, perseguindo com palavras não só os vivos e os mortos, mas também os carros, a tecnologia e a falta que fazia numa casa grande e em obras. 

O marido desconfiou que a extensão da obra para a maioria dos cômodos da casa havia alterado bastante a rotina do casal. Em contra-ponto, ele se recordava que a própria esposa havia proposto a mudança para nova casa ainda em obra. Por isso, estava convencido de que a obra isoladamente não poderia ter causado essa desconfortável transformação na esposa.

Num momento de conversa íntima, ela admitiu, nas entre linhas, que não estava habitando em si completamente e suspeitava que o motivo era o fato de os seus personagens terem se perdido junto com “a verdadeira”, com os seus cadernos e livros, nas caixas da mudança ainda fechadas. Ela “de verdade” era a única que conseguia acordar de madrugada para escrever e afagar a comunidade mental. E enquanto “a autêntica” não se reunisse com todo o grupo, a bruxa continuaria solta.

Por sorte, o marido a conhecia bem e essas conversas de “múltiplas” não o assustavam nem ensejavam razão para visitas médicas. O marido confessava a si mesmo o fascínio que tinha pela diversidade da sua mulher. Foi num momento desses de solilóquio involuntário que ele se lembrou de um episódio de a macaca, sobre a qual a esposa estava escrevendo, ter se apoderado da personalidade dela, quando os seus cadernos foram levados, por engano, numa troca de malas, no aeroporto. Nos dois dias subsequentes até a chegada dos cadernos, ela, ou melhor, a macaca passava horas caminhando nas áreas verdes próximas disponíveis e comendo bananas. 

Ao perceber a semelhança entre os episódios, naquele dia mesmo, ele decidiu convidá-la para fazer um lanche e conversar sobre como resolver a situação. O convite de saírem para comer foi aceito, mas não o de discutir o assunto, que só os deuses poderiam resolver, num passe de mágica, segundo a mulher.

Antes de saírem de casa, ele observou que ela trazia uma vassoura consigo, e, não houve nada que a demovesse da ideia de transportá-la até o recinto. Ele julgou melhor não discutir, pois ninguém seria impedido de entrar num estabelecimento por conta disso.

Na padaria, enquanto o esposo comprava os pães, a suposta esposa olhava as paredes, sentada a uma mesa do outro lado do ambiente, esperando que o marido voltasse com a merenda. No caminho até a mesa, ele percebeu que a mulher forjava um riso. Não era o seu sorriso natural; era tão forçado, que para fazê-lo, ela puxava com os próprios dedos indicadores os extremos da boca, em direção às orelhas. 

O marido caminhou até a mesa com naturalidade, pois antes um sorriso falso a um verdadeiro mau humor, e, ao chegar à mesa, sentou-se tranquilo. 

De ímpeto e repetidamente, ela elogiava a beleza do mundo, a tecnologia e a ausência dela, e, ao próprio marido verbalizava o pedido de perdão por ter estado fora do eixo. O entusiasmo era tanto, que ele não se conteve mais e comentou:

“Que bom que está melhor. Você tinha dito que o motivo da angustia era a falta dos cadernos e do exercício da escrita na alvorada. Você não achou os cadernos ainda nem voltou a escrever. Posso saber o que houve?”

“Acabei de receber um recado do cosmo.”

“É mesmo?”, perguntou ele sem se surpreender, àquela altura, com uma resposta de cunho esotérico. “E você poderia compartilhar?”, perguntou-lhe.

“Veja com os seus próprios olhos.” Disse a sua cúmplice, apontando com a vassoura a parede da padaria, na qual exibia a seguinte mensagem: “Aja como se o que você cria fizesse uma diferença, porque faz.”

A mulher voltou a escrever na madrugada e, desde então, eu não mais retornei para atormentá-la. 

segunda-feira, 8 de dezembro de 2014

A gata triste


Na rua, enquanto caminha, Saturnino chama atenção pela sua aparência física. Cabelos castanhos, rosto comprido, nariz aquilino, estrutura corporal forte e larga. Ele não gosta de falar sobre si mesmo, e, ao ser perguntado sobre qualquer assunto, responde a primeira coisa que lhe venha à cabeça. Parece não se ouvir. Em dias difíceis, ele não teme denunciar o culpado. 

Sexta-feira, ao adentrar à casa do seu irmão, Saturnino exibia um semblante enfadonho e trazia consigo uma caixa contendo uma gatinha. Naturalmente aquele semblante ensejou a pergunta sobre o que havia acontecido, e, Saturnino não titubeou em responder bruscamente que o seu desejo era ter enviado a gata ao veterinário para eutanásia, e,  em seguida, jogá-la num valão qualquer; ele não disse uma palavra sobre o que havia transformado a ternura que tinha pelo animal em aversão, embora tenha garantido que, depois de cinco anos, a gata havia traído a sua confiança, e que não a queria mais. 

Deixou a gatinha na casa do irmão e saiu sem saudá-los carinhosamente. O irmão não se surpreendeu, segurou a gatinha, e, olhando-a nos olhos, segredou: “não se preocupe, segunda-feira ele volta pra te buscar.”

sexta-feira, 5 de dezembro de 2014

Bêerreó-bró

É a denominação, no dialeto piauiense, para os meses mais quentes: setembró, outubró, novembró e dezembró.

Durante esses meses, os transeuntes andam frequentemente acompanhados por uma sombrinha. 

Quando os locais deixam, acidentalmente, tal artefato em casa, a disputa por um lugar à  sombra chega a ser hilariante.

Ao entrar no ônibus, o passageiro busca o lado não castigado pelo sol. Ao longo da jornada, isso varia e se houver oportunidade, o usuário não hesita em brincar de dança das cadeiras.

Na espera para atravessar a rua, a sombra do poste também passa a ser concorrida e tem sempre um pedestre à espreita daquele, que deixe o posto.

O Bêerreó-bró é quase inimaginável a quem não o vivenciou. Quem lá viveu, garante que, no Bró, frita-se milho de pipoca com areia quente. 


Tumba

Jazigo. Esse foi o assunto, introduzido pelo marido, ao entrar no carro com a esposa, na saída da garagem de casa em direção à Região dos Lagos. 

“O assunto te incomoda?” Perguntou ele incontinente.

Ao fundo do abismo mental dela, uma criatura de duas cabeças insurgiu-se, anunciando de um lado “quem não morre um dia?”, enquanto o outro contestava “esconjura, esconjura.” Consequentemente, o assunto a incomodou.

A esposa dissimulou naturalidade, pois era aniversário do marido, e, ela não queria impor as suas superstições cientificamente risíveis, como aquela conhecida dentre os adeptos: “não se fala em morte no dia do aniversário.” 

O marido tão pouco acreditaria em argumento anônimo; ele só almejava convencê-la de que comprar um jazigo, enquanto relativamente jovens e lúcidos, seria um bom investimento; informou ainda que, graças à compra pelo seu avô de um jazigo, os respectivos entes queridos tiveram onde cair mortos; afirmou, com segurança, que se podia cavar mais fundo para que coubessem mais parentes, e, concluiu que isso proporcionaria menos trabalho aos familiares.

Fingindo uma compaixão espontânea pelos possíveis membros  remanescentes da família, a esposa concordou com o marido sobre a aquisição do indispensável bem, para que o aniversariante não descortinasse que ela considerava o tópico sinistro. 

“Não é urgente.” Ele retrucou.

“Que bom, porque nos desejo muitos anos de vida!” Disse a esposa, encerrando discretamente o tema.

segunda-feira, 1 de dezembro de 2014

Convite

Ao entrar neste blog, por favor, jogue fora pelo menos um dos seus problemas, pois queremos você leve e livre dessa angustia. Alargue imediatamente os extremos dos lábios, tentando uni-los às orelhas. O nosso objetivo é proporcionar a esse ambiente uma energia limpa e risonha.

Ah, por favor, plante hoje mesmo os seus desejos, por mais impossíveis que lhe pareçam, pois acreditamos que o mundo é rodeado por criaturas anônimas, que anseiam nos ajudar. 

Acreditamos no pensamento mágico e fazemos todo o esforço necessário para ver beleza todos os dias, por mais que o dia pareça embaçado.

Agora sopre rápido, fazendo fuuuuuuuu! 

Você pode não perceber, mas já está mais leve!