segunda-feira, 5 de novembro de 2012

A missão do constrangimento

Eu jamais viveria isolada numa ilha.

Talvez eu me alimente de gente tanto quanto o Drácula, só que utilizo métodos mais sutis de absorção.

Tenho necessidade do verbo das pessoas.

Por isso, não interagir seria uma tormenta. Porém para se integrar e obter a adorável autoconfiança no que se diz, é necessário cometer erros. 

O silêncio do sertão deve-se à minha pouca capacidade de entendimento e ao meu medo de errar. Como se a cada erro, acendesse um letreiro na minha testa expondo-me ao julgamento e me conduzindo ao cadafalso; e uma voz rouca repetisse: "se ela errou, deve morrer".

"Seria morrer parecido com errar? Se for, morrer deve ser mesmo desconcertante." E chegando ao outro lado, alguém, de maneira abrupta, indaga: "você morreu?" E cai numa gargalhada; depois complementa: "fique tranquilo; acontece com todo mundo". E você ali, morto, humilde, pergunta: "é por aqui?"; e o outro, ainda rindo e pra debochar do recém morto, responde: "continue sem olhar pra trás".

Errar é fundamental, as pessoas dizem. Eu concordo. Mas passar vergonha é constrangedor. 

"Alguém discorda?"

O meu analfabetismo em alemão conduz-me por essa estrada cinzenta: para aprender tem que errar e, vez por outra, ser objeto de olhares (imaginários) e risadas (reais). A propósito, já tenho um par de anedotas que decidi compartilhar. 

Eu estava numa milonga, dançando tango; justo durante os poucos segundos entre uma música e outra, o cavalheiro interveio, dizendo algo assim:

“Ichulrichunddu?”

Eu, sem compreender, do que se tratava, respondi, fingindo autoconfiança: “ich, nicht! Eu, não. Na dúvida, era melhor dizer não ao cavalheiro.

A música seguinte não começava. Por isso, ele insistia ininterruptamente: 

“ichulrichunddu?” “ichulrichunddu?” “ichulrichunddu?” “ichulrichunddu?”

Finalmente, a música recomeçou e a tormenta de não compreender cedeu espaço à dança. O tango me salvou até a próxima pausa.

“Ichulrich,  und duuuuu?” 

E como se um santo alemão tivesse baixado tamanha a insistência do protagonista, a minha língua cuspiu: ich heisse Silvia.

“Ah so! Wie meine Tochter.” (Igual ao nome da minha filha).

Dali por diante, o diálogo seguiu como eu imaginava: de onde você vem, o que faz etc. Não houve tempo pra responder o que eu faço, para minha sorte, porque o nível do meu alemão, nem com a ajuda do santo, seria suficiente pra explicar os trabalhos paralelos que eu faço. 

Ufa! Dançamos. Viva o tango como meio de comunicação. 

Um parêntese aqui: dançar com alemão, comparavelmente, é como dirigir uma merdedes, pode-se atingir uma alta velocidade com segurança, os movimentos fluem de acordo com a capacidade do motor, combinado com a batida da música; os giros e os oitos saem meticulosamente calculados, como se fosse possível prever o imprevisível. Entretanto, como dançar não é preciso, tudo segue surpreendendo. 

A vergonha linguística de não compreender um diálogo básico "ich heisse Ulrich, und du?" foi devidamente compensada. Tudo vale a pena, nós sabemos... no final.

Vamos ao outro passo em falso no idioma do senhor Goethe. 

Eu só queria comprar um piano. Cheguei à loja de instrumentos musicais e perguntei os preços e se eu poderia comprar “em parcelas”. Uma gargalhada brotou de toda a loja, incluindo vendedores e clientes.

Como? Eu havia olhado essa palavra cuidadosamente no dicionário, e para conferir, inseri no google translate. Ensaiei o diálogo. O que havia de errado?

Pois bem. 

Ao invés de dizer que queira pagar em parcelas: Raten (sendo a primeira sílaba forte), eu pronunciei a palavra enfatizando a segunda sílaba, portanto, eu disse que queria pagar em ratos (Ratten).

A cada constrangimento, um novo rol de palavras e de histórias. O constrangimento é vexatório, mas a sua missão é hilariante.

Viva o que nos incomoda! Porque, às vezes, é nesse ambiente sombrio que aprendemos uma boa lição.   

4 comentários:

  1. Constrangimentos sao tipicos no processo de aprendizagem de uma lingua, seja ela qual for. Fatos como falsos cognatos, tonicidade das sílabas que modificam em geral o sentido ou transformam a palavra em substantivo em verbo e vice-versa, fonemas que nao existem na lingua mae do falante e que sao muito dificeis de se reproduzirem por requerirem treino e conhecimento do som, entre outros. E esse aspecto, é um dos grandes viloes para desmotivarem as pessoas ao falarem outro idioma. Portanto, expor-se é um dos melhores métodos para aprender, pois retemos conteudo permanente no nosso cérebro de duas maneiras: por repeticao exaustiva ou por um componente emocional adicionado na vivencia. Concluindo, esses episodios vc nunca mais vai esquecer e por consequencia vc obteve mais um passo na sua busca pelo alemao falado. Seja feliz, mesmo que constrangida temporariamente.

    ResponderExcluir
  2. Ich bin einverstanden. Estou de acordo:) Danke schön für deinen Kommentar! Obrigada pelo seu comentário!

    ResponderExcluir
  3. Pelo menos Silvia, você está mais corajosa que eu. Tem dias que eu converso até com o carteiro, tem dias que eu me desculpo porque meu alemão ainda não é bom e eu não entendi e ás vezes eu entendo tudo mas não sei o que responder...rsrs
    Aprendizado...difícil mas a gente chega lá, um abraço!

    obs: vou ter que usar meu perfil google aqui porque estou sem openid.

    ResponderExcluir
  4. Mallu,

    Também estou nessa fase: "entender e não conseguir responder". Aos pouquinhos a gente chega lá! Ou vamos montar um grupo de autoajuda pra o aprendiz de alemão!

    Abraços,
    Silvia

    ResponderExcluir