terça-feira, 17 de janeiro de 2012

Passaporte, sonhos e viagens

Desde quando eu pedi demissão do meu trabalho em 2008, um sonho, no qual eu perdia meu passaporte, minha identidade, insistia em me angustiar. Na maioria das vezes, eu estava indo para algum lugar, quando me pediam uma identificação, e eu não encontrava, ou me dava conta de que havia perdido. Naquelas ocasiões, sem identidade, eu não poderia existir; e em sonho tudo é possível.

Desta vez foi diferente. Estávamos todos num ônibus, indo à Ayres Rock, onde se situa aquela famosa “pedra” gigante no meio do deserto australiano, também conhecido como centro vermelho. Era um sonho real.




Antes mesmo de chegarmos à Ayres Rock, ainda no avião, foi possível visualizar, do alto, Uluru, como é chamada pelos aborígenes australianos. A sensação foi de uma epifania; todos os quadros pintados pelos aborígenes fizeram sentido; era como se eles tivessem visto o deserto por cima e o transformado em arte.

A viagem já tinha valido a pena, houvesse o que houvesse.

Quando entramos no ônibus do tour, o guia nos pediu que escrevéssemos nossos nomes e país de origem na janela, como forma de apresentação coletiva.

Era meio dia e fomos todos comer. O tour, de três dias, era um esquema aventura. Comeríamos o que o guia cozinhasse, dentro das limitações de recursos e aparatos culinários; e dormiríamos a céu aberto. O guia também dirigia e explicava as histórias e mitos do lugar.

No final do primeiro dia, chegamos ao parque onde se podia ver o pôr do sol em Uluru, e o grupo de viajantes parecia formado por velhos amigos, apesar das diferentes idades e nacionalidades.

No segundo dia, acordamos às 4.30 da manhã para ver o sol nascer em Uluru. Às 5 am estávamos diante dela, tomando o café, preparado pelo guia. Em seguida, fomos dar a volta ao redor de Uluru; uma caminhada, regada com detalhes místicos da cultura aborígene; dingo gigante que impedia uma celebração; meninos que viraram pedras, e outras histórias sem lógica, que fazem do lugar uma conexão com o inexplicável.

De Uluru, partimos para o parque nacional da Katajuta, também conhecida por Olgas. Uma outra rocha também cheia de mitos. Foi justo entre esses dois lugares que aconteceu o que me ameaçava naqueles sonhos.

“Cadê a mochila, amor?”

“Não está comigo. Não está com você?”

“Não. E meu passaporte estava lá.”

“M_r_d_. Será que está no ônibus?”

“Não. Já olhei.”

Informamos ao guia o ocorrido e ele disse que o horário estava cronometrado para conhecermos os outros parques da região;

“Por causa do verão, os parques fecham mais cedo; não podemos voltar para procurar. Não se preocupe, alguém vai pegar e devolver. Isso é comum.” Disse o guia.

Os demais participantes logo se uniram a nós e pediram ao guia que voltássemos para buscar o meu passaporte.

O guia insistiu que alguém iria pegar e devolver para o centro de informações turísticas.

O grupo não desistiu e conveceu o guia de que tínhamos que retornar para buscá-lo.

Entretanto, de nada adiantou, pois ao voltarmos ao local onde acreditávamos ter deixado, não encontramos a mochila.


Aquela perda já havia me perturbado tanto em ocasiões oníricas que, quando  ocorreu, teve um efeito banal. Era como se todos aqueles sonhos tivessem me preparado para aquele ponto na linha do tempo no qual eu seria uma pessoa não identificada. 


"Quem você é?"


"Sou eu. Eu existo."


"Prova quem você é." 


"Não posso."


"Então, você é ninguém."


"Aceito."


(O peso de ser ninguém é muito mais leve e jocoso do que o de ser alguém, que, no fundo, é só um título disfarçado de ser vivo).

O guia informou que poderíamos deixar o nosso tour e esperar pelo próximo, que repetiria os passeios que fizemos e poderíamos procurar nos outros lugares por onde passamos.

“Nem pensar. Vamos continuar a nossa viagem. O pior que pode acontecer é ter que tirar outro passaporte.” Eu disse ao meu namorado, que se surpreendeu com a minha reação. 


E, em seguida, fomos a um outro acampamento onde de novo dormimos à luz das estrelas, não antes de conversamos por horas sobre qualquer coisa, diante de uma fogueira que nós, juntos com o guia, produzimos.

Que alívio! Eu tinha finalmente perdido o passaporte de verdade, e eu continuava existindo e viajando. A única coisa que poderia paralisar a alma era o medo, e esse eu havia perdido.

Na manhã seguinte, continuamos a viagem, de ônibus, e fomos para Alice Springs, onde finalizamos o tour num jantar coletivo, com direito à música e dança. Apesar da música alta e dos drinks que alguns já tinham tomado, foi possível conhecer um pouco mais aquelas pessoas que adestravam cachorros, eram mochileiros, enfermeiras, estudantes, astrólogos, engenheiros e sonhadores. Tive uma vontade de que aquela noite durasse mais umas duas. Porém todos já tinham itinerário pronto pra seguir. Nos despedimos de todos ali mesmo.

Um parêntese aqui: antes de chegarmos ao jantar em Alice Springs, ainda no ônibus, recebemos um inusitado telefonema, que foi motivo de comemoração geral:

“Encontraram a sua mochila. Vamos enviá-la ao escritório em Alice Springs.”

E tudo estava lá como deixei. E o mais surpreendente: nada do que estava lá fez falta na viagem pelo deserto, exceto o meu biquíni.

E seguimos a nossa viagem, sem planos fixos, por mais 27 dias, acampando pela Austrália. Não precisei do meu passaporte nenhuma vez... até esqueci que eu ainda tinha um.

De volta à Melbourne e comentando sobre a viagem, alguns aussies amigos nos perguntaram:

“Isn’t Uluru just a rock?”

“No, mate. It is a place where dreams come true.” Respondemos.  

2 comentários:

  1. Amei, Silvie!!! Que evolução. Ainda vivencio um pouco a perda do meu passaporte, mas tenho mantido o foco para o lado bom do agora.
    Saudades mil!

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    1. Livinha, é um processo...

      Obrigada por passar por aqui!

      Saudades de montão!

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