Passei duas semanas no Brasil, imersa na burocracia e na melancolia das inevitáveis comparações. Depois de tudo, ou apesar de tudo, o Brasil é a minha casa, a casa dos meus amigos e parentes importantes.
Viver em trânsito pode nos fazer sentir mais esperados pelos amigos e familiares. Quem fica sabendo por onde você anda, dá logo um jeitinho de ir ao seu encontro.
“Fala da sua rotina.” Esse foi o pedido que mais escutei. Falo brevemente sobre o meu thankless job de lavar, passar, cozinhar... E logo sou interrompida.
“Não. Fala desde o início: você abre os olhos de manhã, e aí?”
"Medito, acordo o meu namorado, faço o café da manhã, arrumo a casa, faço yoga, tomo um banho, toco piano; depois tento escrever alguma coisa, empaco; cozinho, almoço; e vou à biblioteca para me concentrar melhor, pois lá não tem geladeira nem fogão. Antes de entrar na biblioteca, tomo um café, jogo uma conversa fora com os frequentadores mais assíduos; e, em seguida, me dirigo à State Library of Victoria, meu escritório. Escrevo, empaco, leio, escrevo, empaco. E volto pra casa pra fazer o jantar. Às terças, estudo italiano, às quartas, almoço com uma amiga, às sextas, danço tango; aos domingos, lavo e passo a roupa; e todos os dias leio e faços os exercícios do meu online social media course."
"Medito, acordo o meu namorado, faço o café da manhã, arrumo a casa, faço yoga, tomo um banho, toco piano; depois tento escrever alguma coisa, empaco; cozinho, almoço; e vou à biblioteca para me concentrar melhor, pois lá não tem geladeira nem fogão. Antes de entrar na biblioteca, tomo um café, jogo uma conversa fora com os frequentadores mais assíduos; e, em seguida, me dirigo à State Library of Victoria, meu escritório. Escrevo, empaco, leio, escrevo, empaco. E volto pra casa pra fazer o jantar. Às terças, estudo italiano, às quartas, almoço com uma amiga, às sextas, danço tango; aos domingos, lavo e passo a roupa; e todos os dias leio e faços os exercícios do meu online social media course."
“E você está vivendo de que?”
“Do dinheiro que eu economizei”, respondo.
Meus amigos contam como andam trabalhando; e eu logo percebo que eles estão ficando ricos. O mercado brasileiro parece a Wall Street na década de 80. Greed is good, um amigo comentou . As minhas amigas descrevem a emoção de ser mãe e o dark side pós gravidez. Concluímos que ser mãe é um hard thankless job, porém elas garantem que vale a pena. Outras amigas falam do trabalho e dos planos de viagem. Eu imploro que venham me visitar. Ninguém me deu sinal de esperança.
A viagem teria sido perfeita se não tivesse sido tão curta e intercalada por voos tão longos, em especial o retorno à Austrália. Voamos do Rio a SP, onde esperamos por quatro horas até o próximo embarque; depois enfrentamos 13 horas de voo até Doha; de Doha à Melbourne, mais treze horas enclausurada e comprimida. Não sei se eu deveria contabilizar os três dias subsequentes à chegada, estávamos aparentemente dispostos até que de repente nos assolava uma desídia irresistível. Durante esses três dias, dormi por volta de oito da noite. Eu já tinha ouvido a expressão “o corpo fala”, porém me deparei com a máxima “o corpo apaga”. Shut down.
Não escolhi. Calhou de ser segunda-feira o dia que pretendo voltar a escrever. Tenho até medo de falar assim e tudo ir por água abaixo. Sei que é o dia impróprio para o (re)começo, porém eu já tenho uma boa desculpa se tudo der errado. É segunda-feira. Hoje entendo melhor as pessoas, que fazem dieta, bem como, aquelas que pretendem voltar a fazer exercício às segundas-feira. Você prepara tudo e, ainda assim, uma enorme icógnita te acompanha o dia todo, impedindo qualquer previsão.
“Vou conseguir?”
“Nao sei” (a gente se responde; falo “a gente” porque estou segura de que o pessoal da dieta está me acompanhando em coro).
“Tenho que produzir algo.” (Eu me digo).
“Escreve aí essa lenga-lenga que você está pensando. Não para de digitar. Digita, digita, digita.” Esse que vos fala é um dos mentores da minha comunidade mental. Por favor, ignorem-no.
Já me levantei umas três vezes da cadeira. Uma pra beber água, outra pra ir ao banheiro; e a terceira vez não soube identificar o motivo, por isso, me sentei e me levantei mais umas três vezes consecutivamente sem sair do lugar; se alguém visse, ia achar que eu estava brincando sozinha da dança das cadeiras, em silêncio.
São quase meio dia e meia e até agora tudo que consegui foi saciar os meus inesperados desejos. Há três meses eu não nadava; justo hoje senti uma coragem louca de nadar; me imaginei atravessando o Pacífico. Depois de nadar, pensei que me sentaria pra escrever. Nada. Fiz um bom segundo café da manhã e às 10:40 am, comecei a fazer o meu almoço. Às 11:30 eu estava comendo.
Resolvi mudar a estratégia. Ao invés de sentar pra escrever, vou ler os meus emails e respondê-los, pra aquecer o movimento manual. Funcionou. Li um email de um grande amigo, que dizia esperar ansiosamente o próximo “post”, dando um mote: “faz um relato sobre a viagem de 30 horas”. A palavra ansiosamente é exagero meu, porém o email é verídico, posso provar, se for necessário.
Devo confessar que me preparei bem pra esse cárcere aéreo. Tinha na bolsa dois livros. Só li um deles: “Cartas a um jovem escritor”, do Mário Vargas Llosa. É um ótimo livro para bons leitores e para um escritor preparado, pois o autor cita exemplos advindos de obras clássicas, tais como “Os miseráveis”, “Ulisses” e “Dom Quixote”. Ao longo da leitura, visualizei um abismo colossal entre mim e o livro, pois os três exemplos mais recorrentes eu não havia lido.
“Precisa registrar que não leu?” (é o velho mentor da comunidade novamente. Pule para o próximo parágrafo). Não sei quem falou que escrever é uma atividade solitária.
Tomei conhecimento que Victor Hugo levou 30 anos escrevendo “Os miseráveis”; a obra (tijolo) Ulisses passa-se em 24 horas; e Dom Quixote é um livro dentro de um manuscrito. De modo que tem luz no fundo do abismo, o livro prepara o jovem escritor para ler essas obras clássicas e compreender o mistério da babuska nos livros; uma história dentro da outra, para encantar e prender o leitor.
Não li o livro de uma tacada só. A leitura foi intercalada por pensamentos e conversas com a comunidade invisível. Numa dessas conversas, discutimos se o avião era ou não um transporte público. Para você isso talvez não pareça crucial, mas pra mim é, pois, ultimamente, parte das minhas histórias, escrevo enquanto estou em transportes públicos; naturalmente os dados tomam forma.
Elevador, por exemplo, não me parece um transporte público, considerando que não logrei êxito na criação completa de uma história. Tudo que consegui foram frases.
“Entrou e saiu, sem dizer uma palavra.”
“Entrou, olhou, reconheceu o constrangimento coletivo, baixou os olhos e permaneceu assim até a saída.”
“Entrou, não se reconheceu no espelho, e passou o resto do dia pensando nisso.”
Depois de horas mentais e minutos reais (em voos longos os minutos duram horas) de um solilóquio suspeito, concluímos que o avião funciona como transporte público, no que tange à confecção de histórias constituídas de material de sonho. Um sonho pode não fazer sentido depois que acordamos, porém enquanto dormimos não questionamos a lógica nem a coerência dos fatos ocorridos. Da mesma forma se dá com uma história confeccionada no ar do transporte público; aparentemente é bem sucedida, porém nada garante que fará sentido no papel.
“Eu quero uma torta igual a de ontem. E vocês?” , perguntou a Belga.
“A torta”. Pensou alto Marie, olhando o cardápio e se deleitando por ter se lembrado do sonho daquela manhã.
“Ele falava da repetição. Eu estava estudando o comportamento do turista. O turista é aquele que viaja e sai da rotina; no entanto, quando encontra algo que lhe apraz, começa a repetir”. Relatou Marie, algumas horas antes do voo, enquanto tomávamos café, os fatos ocorridos no dia anterior naquele mesmo local. Em seguida, ela me aconselhou: “ escreve sobre a diferença na repetição e a repetição na diferença.” O sonho dela não havia me parecido tão complexo até ouvir aquela sugestão de título. Fiquei me sentindo uma traficante de sonhos, sem saber o que fazer com aquela matéria-prima.
Em teoria, as histórias ficam bem encadeadas. Na prática, elas tomam um rumo próprio; só existem se quiserem.
Outra história que me soou perfeita no ar diz respeito às conversas que tive com os meus parentes. Enquanto conversava com a minha tia, expliquei o que todo mundo quer saber (o que eu estou fazendo aqui) e lhe contei sobre o meu sonho de escrever.
“Por que você não escreve sobre as particularidades daqui? O bar das divorciadas. Até hoje só entra divorciada lá. Ou sobre o bar da Miúda? Só entra homem casado, pois as esposas dos respectivos confiam que a Miúda não deixa entrar mulher. Isso existe por onde você anda?”
"Não, tia. Por onde eu tenho andado, as mulheres estão no comando. Está escrito na moeda de um dólar australiano: girl guides Australia."
“É, minha filha? Se essa moeda chegar por aqui, a dona Miúda vai falir. É melhor você não escrever sobre isso não; vai acabar te causando vergonha por aí”.
“Tia, eu estava pensando em escrever sobre sabedoria popular.”
“Tenho uma ótima. Quando eu comecei a fumar, eu era novinha, aprendi que baforar parede branca tirava o cheiro do cigarro; "efeito cal". Essa sabedoria dá uma post?”
“É verdade isso, tia? Quero dizer: funciona?”
“Nunca ninguém descobriu que eu fumava”.
Em relação à sabedoria popular, minha irmã, que também participava da conversa, acrescentou que um amigo lhe garantiu que comer papel depois de beber tira o cheiro do álcool da boca. Em várias ocasiões, ela presenciou o amigo comendo papel, depois da noitada.
Quando a minha avó, de oitenta anos, chegou à sala onde estávamos, também lhe perguntei se ela tinha algum exemplo de sabedoria popular. Ela falou que o google tinha resposta pra tudo; e que ela não se sentia mais à vontade pra usar os tratamentos antigos; o único ao qual ela ainda se valia era o São Longuinho.
“Ô meu São Longuinho, se eu achar os meus óculos, dou três pulinhos.”
“Nenhuma mais, vozinha?”
“Existem aquelas que ninguém acredita.”
“Por exemplo?”
“Baforar parede branca pra tirar o cheiro do cigarro da boca”.
Trinta horas de voo. Temo que você não aguente, se eu continuar até o desembarque. Fico por aqui. Boa semana.
Oi!! Tô com um medo doido de guentar esse tranco de vôo, ops, sem circunflexo, voo!!! Mas, no meu caso, estarei sem o llosa e correndo atrás do moleque! bjs :) (vai com o nome do filhinho)
ResponderExcluirCorrendo atrás do moleque, você vai se manter jovem e em forma. Aí você pode escrever um artigo "como rejuvenescer em 30 horas". Obrigada por ter lido. Bjs;)
ResponderExcluirAdorei! Continue, continue, jovem escritora. O texto está amadurecendo a cada post e prendendo cada vez mais a leitura. me encanta!
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