Durante os primeiros dias seguintes à mudança para a casa nova, ele quase não reconheceu a esposa; não fosse a sua aparência física, ele diria tratar-se de outra mulher.
A tal esposa comportava-se como se estivesse num labirinto cheio de fantasmas, perseguindo com palavras não só os vivos e os mortos, mas também os carros, a tecnologia e a falta que fazia numa casa grande e em obras.
O marido desconfiou que a extensão da obra para a maioria dos cômodos da casa havia alterado bastante a rotina do casal. Em contra-ponto, ele se recordava que a própria esposa havia proposto a mudança para nova casa ainda em obra. Por isso, estava convencido de que a obra isoladamente não poderia ter causado essa desconfortável transformação na esposa.
Num momento de conversa íntima, ela admitiu, nas entre linhas, que não estava habitando em si completamente e suspeitava que o motivo era o fato de os seus personagens terem se perdido junto com “a verdadeira”, com os seus cadernos e livros, nas caixas da mudança ainda fechadas. Ela “de verdade” era a única que conseguia acordar de madrugada para escrever e afagar a comunidade mental. E enquanto “a autêntica” não se reunisse com todo o grupo, a bruxa continuaria solta.
Por sorte, o marido a conhecia bem e essas conversas de “múltiplas” não o assustavam nem ensejavam razão para visitas médicas. O marido confessava a si mesmo o fascínio que tinha pela diversidade da sua mulher. Foi num momento desses de solilóquio involuntário que ele se lembrou de um episódio de a macaca, sobre a qual a esposa estava escrevendo, ter se apoderado da personalidade dela, quando os seus cadernos foram levados, por engano, numa troca de malas, no aeroporto. Nos dois dias subsequentes até a chegada dos cadernos, ela, ou melhor, a macaca passava horas caminhando nas áreas verdes próximas disponíveis e comendo bananas.
Ao perceber a semelhança entre os episódios, naquele dia mesmo, ele decidiu convidá-la para fazer um lanche e conversar sobre como resolver a situação. O convite de saírem para comer foi aceito, mas não o de discutir o assunto, que só os deuses poderiam resolver, num passe de mágica, segundo a mulher.
Antes de saírem de casa, ele observou que ela trazia uma vassoura consigo, e, não houve nada que a demovesse da ideia de transportá-la até o recinto. Ele julgou melhor não discutir, pois ninguém seria impedido de entrar num estabelecimento por conta disso.
Na padaria, enquanto o esposo comprava os pães, a suposta esposa olhava as paredes, sentada a uma mesa do outro lado do ambiente, esperando que o marido voltasse com a merenda. No caminho até a mesa, ele percebeu que a mulher forjava um riso. Não era o seu sorriso natural; era tão forçado, que para fazê-lo, ela puxava com os próprios dedos indicadores os extremos da boca, em direção às orelhas.
O marido caminhou até a mesa com naturalidade, pois antes um sorriso falso a um verdadeiro mau humor, e, ao chegar à mesa, sentou-se tranquilo.
De ímpeto e repetidamente, ela elogiava a beleza do mundo, a tecnologia e a ausência dela, e, ao próprio marido verbalizava o pedido de perdão por ter estado fora do eixo. O entusiasmo era tanto, que ele não se conteve mais e comentou:
“Que bom que está melhor. Você tinha dito que o motivo da angustia era a falta dos cadernos e do exercício da escrita na alvorada. Você não achou os cadernos ainda nem voltou a escrever. Posso saber o que houve?”
“Acabei de receber um recado do cosmo.”
“É mesmo?”, perguntou ele sem se surpreender, àquela altura, com uma resposta de cunho esotérico. “E você poderia compartilhar?”, perguntou-lhe.
“Veja com os seus próprios olhos.” Disse a sua cúmplice, apontando com a vassoura a parede da padaria, na qual exibia a seguinte mensagem: “Aja como se o que você cria fizesse uma diferença, porque faz.”
A mulher voltou a escrever na madrugada e, desde então, eu não mais retornei para atormentá-la.
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