Na cidade de Fefé, ninguém falava. Lá o governo decidiu que as palavras deviam ser concessão privada da empresa, que ganhou a licitação de comunicabilidade irrestrita.
Então se alguém naquela cidade quisesse falar, tinha que comprar palavras. Alguns cidadãos tinham sorte e se deparavam com palavras atiradas ao lixo, ou jogadas ao vento que se encontravam presas às árvores.
Todo e qualquer som passou a ser vigiado pela empresa concessionária. Ninguém podia fazer barulho, gemidos ou grunhidos, sem o devido recibo de compra daquelas expressões.
A medida da concessão foi tomada, porque os cidadãos não se entendiam mais, xingavam-se uns aos outros por terem diferentes opiniões.
Houve gente que matou parente, alegando que de acordo com o seu respectivo decoro, tratava-se de um imprestável.
Embora se pudesse falar bastante no período anterior à medida da concessão, foi uma época triste.
Os cidadãos davam-se ao trabalho de só se comunicarem por meio de rótulos. Eram os de lá, os de cá, os energúmenos, os atrevidos, os claros, os escuros, os redondos, os palitos, e assim por diante. Era como se a escuta e o carinho tivessem caído no esquecimento coletivo.
Consequentemente, a raiva logo se alastrou pela cidade e se transformou em ódio e vingança.
Era gente da própria família que se deixou dominar pelo ódio e desdenhou o parentesco e a amizade. Era admirado aquele que se destacava entre os mais cruéis.
Foi quando o governo teve a ideia de proibir a comunicação entre os que pensassem diferentes. No dia seguinte, estendeu a proibição a todos, para demonstrar a sua capacidade de justiça.
A cidade ficou sem voz e a aparência de paz reinou, pois tanto os que gostaram da decisão quanto os que a odiaram não podiam se expressar. O silêncio cedeu espaço para uma espécie de trégua. As brigas passaram a ser internas.
Na intenção de garantir a paz, o governo transportou os diferentes para um lado da cidade, e os iguais para o outro. Segundo o governo, houve uma sensação de vitória para um dos grupos, porém o grupo não foi identificado.
Os iguais não tinham mais de quem falar. Em todo caso, se tivessem, já não podiam, a não ser que comprassem as palavras a serem ditas.
Os diferentes já se sentiam iguais até demais, e, embora quiserem falar, também não podiam.
Sem palavras, a vida na cidade seguiu. Os moradores continuaram trabalhando. Voltavam para casa exaustos de silêncio.
Nos finais de semana, os moradores tentavam relaxar, mas o silêncio era ensurdecedor e, mais do que a paz, o tédio reinava.
Um morador andando a esmo para combater o próprio tédio, encontrou misturadas ao lixo as palavras diversidade e viva. Olhou para elas e ficou confuso. Fazia tempo que já não lia. Repetia as palavras mentalmente, para não levantar suspeita. Repetiu tantas vezes que sentiu um calor e começou a correr feito louco. Já não fazia ideia por onde estava indo.
Sem perceber, chegou ao lado de lá da cidade e se encontrou entre os diferentes. Estava esbaforido, parecia que ia morrer.
Entre todos, ele se viu diferente. Teve medo de ser reconhecido ali.
Um dos diferentes percebeu o medo e lhe perguntou o que ele tinha nas mãos.
Foi quando ele mostrou as únicas palavras que tinha em mente: buscando sentido.
Dizem que tempos depois, os grupos se reuniram e lutaram para de dizer essas e tantas outras palavras, que lhe apertavam o coração.
Os sobreviventes contam que foi uma luta estranha, porque as autoridades não podiam desconfiar.
Para evitar qualquer suspeita, a arma utilizada foi a escuta. Primeiro a escuta de si próprio, a batida auricular, o pulsar do sangue, o mastigar e engolir da comida, a comiseração do ego, e, finalmente a respiração.
Apesar das aparências, nada estava sob o controle de ninguém. Cada inspiração, um aviso, uma mensagem.
A intuição começou a dar sinais de conectividade. Depois vieram as coincidências, os olhares, a compreensão de algo muito maior.
O silencio agora tinha uma musicalidade perceptível para a maioria. Um a um tinha seu momento de despertar. De longe aquela multidão encurralada, pelas regras impostas, parecia um campo fosforescente.
Diante de tanta calmaria, as autoridades fecharam os olhos, para os estrangeiros, tudo aconteceu nesse piscar de olhos, mas os cidadãos sabem o caminho que percorreram para recuperar um ao outro e cada palavra pronunciada.
Lá a vida floresceu de um jeito tão singular que a cidade virou patrimônio histórico da humanidade.
Desde então nesse lugarejo, comemora-se o dia da palavra favorita, o dia do diferente e do seu opositor.
A concessionária briga na justiça até hoje pelo direito de dizer o que os outros pensam. Entretanto, o juízo local não se deixa mais enganar.